24 de abril de 2025

A palavra e a escrita em três gerações


Neta de Erico e filha de Luis Fernando Verissimo, Fernanda Verissimo reflete sobre herança literária, memória e legado familiar e fala sobre sua trajetória entre a pesquisa, a escrita, o roteiro e a tradução


“Foi um privilégio ter crescido literalmente entre livros, que estavam (e continuam) presentes em todos os cômodos da casa que foi de meus avós e agora é de meus pais, e onde ainda trabalho.” — Fernanda Verissimo

Por Felipe Maciel

A nova seção Entrevista do Mês estreia com uma conversa especial com a escritora, historiadora, tradutora e roteirista Fernanda Verissimo. Autora dos livrosImpressão nas Missões Jesuítas do Paraguai (Edusp) e da graphic novel A Batalha (Quadrinhos na Cia), em parceria com o ilustrador Eloar Guazzelli, e organizadora da obra A história de Nicolau I, Rei do Paraguai e Imperador dos Mamelucos (Unesp), Fernanda compartilha sua trajetória entre a pesquisa acadêmica, a criação literária e as influências de um ambiente profundamente marcado pela literatura.

Filha de Luis Fernando Verissimo e neta de Erico Verissimo, dois dos maiores nomes da literatura brasileira, Fernanda cresceu cercada por livros, histórias e vínculo familiar. Mas sua relação com as palavras percorre caminhos próprios e transita entre diferentes linguagens: do roteiro à tradução, da tese de doutorado à narrativa em quadrinhos.

Na entrevista, ela relembra momentos vividos na casa da família no bairro de Petrópolis, em Porto Alegre — espaço de convivência que também é território literário, retratado no documentário Verissimo. Fala sobre as memórias afetivas, a intimidade familiar e o legado compartilhado entre gerações.

Fernanda também comenta como surgiu o pitch para a criação de A Batalha, obra finalista do Prêmio Jabuti, e as descobertas que marcaram seus estudos sobre a imprensa nas missões jesuíticas do Paraguai, tema árduo e pouco explorado, que orientou sua pesquisa de doutorado.

A entrevista é um mergulho em temas como memória, história, literatura e identidade — e revela a potência da família Verissimo, que reinventa a própria trajetória e expande o universo das palavras.

  1. Você nasceu numa família que tem o dom da palavra escrita. Seu avô, Erico Verissimo, se tornou um dos escritores mais aclamados do Brasil, com obras de grande apelo popular. Seu pai, Luis Fernando Verissimo, também se tornou um escritor renomado, um cronista de imenso sucesso e chegou a ser o autor mais vendido do país. Como foi crescer nesse ambiente literário tão forte? Que impacto você sente que isso teve na sua formação como pessoa e, mais tarde, como autora?

Foi um privilégio ter crescido literalmente entre livros, que estavam (e continuam) presentes em todos os cômodos da casa que foi de meus avós e agora é de meus pais, e onde ainda trabalho. Mais do que isso, no entanto, acho que o que me formou mesmo foi a efervescência da casa, os almoços em família, a oportunidade de conhecer figuras especiais, artistas e escritores que passavam por ali. Nunca houve qualquer pressão para que seguíssemos carreiras ligadas à literatura, mas foi o que acabou acontecendo (minha irmã Mariana é roteirista, meu irmão Pedro é cantor e compositor) e essas escolhas talvez tenham sido mais fáceis porque sabíamos que viver de escrever era uma possibilidade. 

  1. Jornalista, tradutora, roteirista e autora de dois livros, você também desenvolveu uma carreira ligada à palavra. Em que momento percebeu que seguiria, com voz própria, uma trajetória também ligada à escrita?

Nunca tive essa percepção, na verdade. E nem acho que eu tenha uma carreira propriamente dita. Cheguei a entrar na faculdade de música, queria ser flautista! Mas acabei me formando em jornalismo, viajei bastante, passei uma temporada trabalhando em Moçambique, depois morei muitos anos na França, onde trabalhei com audiovisual enquanto fazia o doutorado em história. Voltei para casa para ter minha filha perto dos avós. Tenho o privilégio de poder escolher o que faço e é verdade que quase tudo é ligado à palavra, mas não acho que tenha uma voz própria. Aliás, o que mais gosto de fazer é traduzir a voz dos outros, apesar de achar que a tradução é a mais difícil das escritas.

  1. Em 2025, celebram-se os 120 anos de nascimento do seu avô, Erico Verissimo. Estão previstos eventos ou homenagens? Qual foi o primeiro livro dele que você leu — e qual é o seu favorito?

Há vários eventos programados para a comemoração dos 120 de nascimento e 50 de morte de meu avô. Com a ajuda de amigos e colaboradores, reativamos a associação Acervo Literário Erico Verissimo e conseguimos o apoio de várias instituições, prefeituras e órgãos estatais, que irão homenageá-lo em feiras do livro e exposições. Os SESC de vários municípios, dentro e fora do RS, também se mobilizaram. A editora Companhia das Letras vai lançar uma edição especial de Ana Terra e adaptações em quadrinhos de Incidente em Antares e O Tempo e o Vento. Essas efemérides servem de “gancho” para relembrar e até reavaliar um escritor impressionante pelo escopo e qualidade da obra. Erico ainda é muito conhecido e lido, mas eu acho que as pessoas esquecem a importância que ele teve como escritor tão popular quanto respeitado, como intelectual público também. Isso sem falar na importância dele como editor, sua passagem pela editora Globo e a participação na publicação de grandes clássicos e também de novas vozes da literatura internacional no Brasil.

Acho que o primeiro livro dele que li foi Gente e Bichos uma coletânea de todas as histórias infantis. O Urso com Música na Barriga ainda é um dos meus infantis favoritos. Depois, ainda criança, li A Vida de Joana D’Arc, que me impressionou muito. Adoro Caminhos Cruzados e todo O Tempo e o Vento, claro. O Continente é genial, mas é preciso ter fôlego e ir em frente. Vale a pena ler a trilogia toda.

  1. Seu pai ficou conhecido em todo o país pelo humor refinado, pelo texto conciso e por um estilo inconfundível. Você sempre foi leitora dos textos dele? O que mais te encanta em sua escrita?

Sempre fui leitora dele. Há toda uma geração de escritores, roteiristas, publicitários e professores gaúchos – entre eles, eu – que se criou lendo meu pai diariamente nos jornais de Porto Alegre, antes que ele fosse descoberto no resto do país, onde seguiu tendo o mesmo efeito. O que ainda hoje me impressiona é que, durante mais de trinta anos, ele escreveu e desenhou diariamente sobre os mais variados assuntos mantendo uma qualidade invejável. Depois passou a escrever menos, mas sempre com a mesma relevância. Acho que o que mais me encanta é essa capacidade de ser claro, aparentemente simples, e ao mesmo tempo surpreendente e incisivo no raciocínio, além de muito engraçado, claro. Aliás, essa aparente simplicidade fez com que muita gente achasse que seria fácil imitá-lo, o que deu origem a alguns mal cronistas.

  1. Você conviveu intimamente com seus avós, Erico e Mafalda Verissimo. Que lembranças guarda dessa época? Como eles eram no dia a dia, no convívio familiar?

Sim, vivi toda a infância e adolescência na casa de meus avós, com meus pais e irmãos. Eu tinha dez anos quando meu avô morreu, lembro muito bem dele, e vó Mafalda ainda viveu mais quase trinta anos, então convivemos bastante e muito bem. Ela era uma mulher admirável, cheia de amigos, grande companhia. Não eram avós comuns, tinham a própria vida, viajavam bastante, recebiam muita gente, a casa estava sempre cheia. Ao mesmo tempo – e isso também pode ser dito sobre meus pais – eram pessoas que não se levavam muito à sério, nunca foram pretensiosas. Só tenho lembranças afetuosas, e eles ainda estão muito presentes na casa, como uma espécie de assombração camarada.

  1. O documentário Verissimo, dirigido por Angelo Defanti, acompanha a rotina da família na casa em Petrópolis — que acaba se tornando quase um personagem. Como era a vida ali? Que histórias marcantes guarda desse tempo?

A casa é um personagem, sem dúvida! Ela é uma criação coletiva de três gerações – agora quase quatro com minha filha Lucinda e meu sobrinho Davi – mas a mantenedora e alma da casa é minha mãe, Lúcia, dona de uma energia inacreditável.  

  1. Você é autora de dois livros bem distintos. Como foi escrever o roteiro da HQ A Batalha, finalista do Jabuti e ilustrada por Eloar Guazzelli? E como foi mergulhar na pesquisa acadêmica para Impressão nas Missões Jesuítas do Paraguai, fruto do seu doutorado?

Fiz o doutorado sobre um tema bem específico, quase esotérico: os livros impressos nas missões jesuítica-guarani. Grande parte da pesquisa foi o exame, página a página, de todos os exemplares que consegui acessar em bibliotecas espalhadas pelo mundo, um trabalho chato, minucioso. Mas para entender a razão da existência desses livros, também tive que aprender muito sobre essa experiência missionária, e me dei conta que ela é cheia de episódios dignos das melhores aventuras. Um deles é justamente a batalha que, vencida pelos guaranis, permitiu que as missões se estabelecessem no que então era chamado de província do Paraguai.

Criei o “pitch” dessa batalha para o Guazzelli, de quem sempre fui grande admiradora, e ele abraçou o projeto. Nos conhecemos há muito anos (trabalhamos juntos nos anos 80, no estúdio de animação de Otto Guerra) e eu acho que não teria encarado esse trabalho sem ele, que é um mestre dos quadrinhos e da ilustração. Eu nunca tinha feito roteiro de HQ, e foi uma experiência que eu gostaria de repetir.

  1. Você tem novos projetos em andamento? Pode nos contar um pouco sobre o que vem por aí?

Esse ano tenho me dedicado principalmente a reorganizar o Acervo Literário Erico Verissimo, que é uma associação sem fins lucrativos. Grande parte do acervo do vô está no Instituto Moreira Salles, no Rio, mas também há muito material no Memorial Erico Verissimo, em Porto Alegre, em bibliotecas pelo Brasil e na casa museu de Cruz Alta, onde ele nasceu. Isso sem falar nos manuscritos que estão espalhados por aí, com colecionadores privados, porque meu avô saía dando seus papéis aos amigos sem se importar muito com a posteridade. Estamos com alguns projetos em andamento e gostaríamos de ser proponentes e colaboradores em ações dedicadas ao livro e à leitura. Existem muitos institutos, fundações e associações ligadas à acervos artísticos por todo o país, além das bibliotecas e instituições públicas, e tenho aprendido muito sobre como eles funcionam e, se tudo der certo, sobre como podemos colaborar.


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