
Da migração à censura, da memória ao futuro, a escritora carioca reflete sobre 25 anos de escrita atravessada por deslocamentos e a literatura como espaço de memória e criação
Por Felipe Maciel
Em recente visita ao Brasil, onde lançou seu novo livro de poesia Antes de dar nomes ao mundo, Adriana Lisboa cumpriu uma agenda intensa de compromissos, com lançamento da Janela Livraria, no Rio de Janeiro, e a presença em mesas durante a Bienal do Livro Rio e A Feira do Livro em São Paulo.
Com 25 anos de carreira literária completados em 2024, a escritora carioca construiu uma trajetória sólida, publicando romances, livros infantis e de poesia, contos e ensaios, além de traduzir para o português grandes nomes da literatura mundial, como Margaret Atwood, Marguerite Duras, Maurice Blanchot, Emily Brontë e Cormac McCarthy.
Formada em Música e Literatura, Adriana tinha 33 anos quando recebeu o Prêmio José Saramago pelo romance Sinfonia em branco, em 2003. Na ocasião, o escritor português vencedor do Nobel de Literatura saudou a jovem escritora brasileira com as palavras: “Adriana Lisboa é uma autora para o presente e para o futuro.”
A partir do romance Rakushisha, de 2007, que retrata uma viagem ao Japão, o tema do deslocamento se torna central em sua obra. A vida de imigrantes sem documentos é o eixo central de Azul corvo, de 2010, assim como o encontro entre culturas distintas e a miscigenação está no cerne de Hanói, de 2013, e o luto e a distância marcam Todos os santos, de 2019. São reflexões que dialogam diretamente com a trajetória da autora carioca, que reside nos Estados Unidos e já morou na França, Nova Zelândia e Japão.
Seus livros tratam também das perdas de natureza coletiva, da consciência ecológica à ascensão do conservadorismo. É o caso de seu romance mais recente, Os grandes carnívoros, de 2024, definido pelo crítico literário André de Leones como um “belo livro apocalíptico”, escrito “pela melhor ficcionista de sua geração”.
Avessa a modismos e aos holofotes, a autora colhe no tempo o reconhecimento pela dedicação à palavra escrita: sua obra já foi traduzida em mais de 20 países. Seus poemas e contos saíram em publicações como Modern Poetry in Translation, Granta, Asymptote e revista Casa de las Américas.
Adriana Lisboa é a nossa convidada para a Entrevista do Mês da Agência Riff. Nesta conversa, ela reflete sobre os 25 anos de carreira, os temas centrais de sua obra, a censura aos livros que se alastra pelo Brasil e a experiência de escrever e publicar em português mesmo distante há muitos anos de seu país. Confira!
1. Sua obra transita entre muitos gêneros e territórios — do romance à poesia, do ensaio à literatura infantil. Como você entende sua escrita hoje? Há um eixo que a costura por dentro?
Tenho a impressão de que cada projeto, cada ideia que me ocorre “pede” um gênero. Às vezes quero contar uma história mais longa, e ela demanda o formato do romance; outras são mais breves e se adequam melhor ao conto. Às vezes é só um instantâneo, uma impressão, uma marca, um comentário, e daí o poema se presta melhor. O ensaio longo foi uma experiência única, e teve a ver com o momento e as circunstâncias em que foi escrito: a perda recente do meu pai, e a memória da perda da minha mãe. Nesse caso, eu não queria contar uma história ficcional: queria só entrelaçar lembranças, reflexões e pontes que me ocorriam com outras obras, naquele contexto. Já os livros para crianças e jovens são um papo com um público leitor um pouco distinto, o que requer um outro “idioma”, quase. Mas pelo lado de dentro não vejo muita divisão entre o que faço. As minhas preocupações éticas, estéticas e os meus temas são os mesmos, podem ir variando ao longo dos anos, mas são compartilhados por todos os gêneros em que escrevo.
2. A delicadeza é uma marca reconhecível nos seus livros, mesmo quando há dor ou perda. Como você constrói esse equilíbrio entre leveza e profundidade?
Sempre tive um certo pé atrás diante da palavra “delicadeza”, embora ela seja usada com alguma frequência para falar do meu trabalho. Eu optaria por falar de uma busca da simplicidade e da leveza (no sentido proposto por Calvino), porque as várias acepções da palavra “delicadeza” podem apontar para certa fragilidade, ou mesmo para certa debilidade. O que me interessa hoje em dia é a palavra mais simples, e que o pensamento seja, ainda assim, complexo e multidimensional por trás da palavra simples. Tento não cair na armadilha de “dramatizar o drama”, quando se trata de situações que já carregam grande potencial dramático. Porque a própria vida tem inúmeras camadas. A gente pode estar se roendo de dor, pode estar de cama, de luto, e há um avião passando no céu, um cachorro latindo no vizinho, alguém escutando um samba na esquina.
3. O deslocamento geográfico — entre países, idiomas, culturas — é constante na sua literatura. O que a movimentação física ou simbólica desperta na sua escrita?
Uma reflexão sobre o que significa, em última instância, sermos parte: de uma relação, de uma família, de um bairro, de um país, de um grupo, do mundo. Escrever sobre essa movimentação física ou simbólica, como você diz, me ajuda a lembrar que nada é realmente sólido, e que muitas vezes buscamos endurecer nossas identidades vinculando-as a isso ou aquilo, mas na verdade tudo é bastante fluido, passageiro e inconstante. Relações terminam, outras começam, famílias se desfazem, pessoas morrem, cidades mudam, mudamos de cidade, nossos corpos mudam, nossa mente muda. Levamos vidas migrantes, em essência. Mesmo quando queremos a imobilidade, porque as coisas não deixam de mudar ao nosso redor.



4. Sua obra é marcada por um olhar ético e humano. Que papel a literatura pode (ou deve) ter frente às questões do mundo contemporâneo — como migração, desigualdade, violência?
Acredito no potencial transformador (porque problematizador) da arte, que nos ajuda a ver as coisas sob novos ângulos. Por isso tenho tanto medo da arte e da literatura panfletárias, bidimensionais, que procuram deixar bastante claro quem é “do bem” e quem é “do mal”, por exemplo. Ao fazer isso, nos tornamos escravos de uma ideologia. A literatura deveria bagunçar nossas crenças, e fazer com que perguntássemos (e nos perguntássemos) incessantemente: tem certeza? Sempre é possível dar um passo além. O mundo é muito, muito complexo. Só acredito numa verdadeira evolução da humanidade se houver uma evolução ética e de pensamento, e para que isso aconteça precisamos botar o dedo nas nossas muitas feridas, de um modo honesto e sem querer trocar o antigo ditador por um ditador novo, por assim dizer. Ou seja: é preciso pensar as coisas em sua estrutura, e pensar mais e mais a fundo. A literatura e a arte – e a filosofia – podem nos ajudar a fazer isso.
5. Recentemente, a Secretaria Municipal de Educação de Maricá determinou o recolhimento de exemplares do seu livro infantil “Pipoca e Picolé” (Elo), que haviam sido distribuídos a alunos do Pré II por meio do kit Cantando e Contando e do projeto Ler e Reler. Como avalia a censura aos livros cada vez mais recorrente no Brasil?
O que posso dizer? É uma estupidez e uma burrice, porque livros como o meu não são “contra” nada, mas a favor – do amor, do respeito, da amizade, do cuidado, do carinho. Há tanta coisa urgente acontecendo no mundo, temos uma crise climática com a qual lutar, guerras, ameaça nuclear, e tem gente ainda se importando com o fato de que uma mulher é casada com outra mulher, de que um homem namora outro homem, e por aí afora. Mas na verdade sabemos que a agenda conservadora tem um projeto político bastante assustador, e não se trata de defender alguma moral, mas apenas de elaborar estratégias (eficazes!) para chegar ao poder. Isso é aterrador.
6. Você mora há anos fora do Brasil, mas continua escrevendo e publicando em português. Como essa distância física afeta (ou alimenta) sua relação com a língua e com os temas que você escolhe escrever?
São quase duas décadas fora do Brasil, mas minha sensação é a de que vivo, pelo menos em casa, quase que numa espécie de “posto avançado” do meu país natal. Escrevo fundamentalmente para o leitor brasileiro (não estou de olho no “mercado internacional” e as traduções dos meus livros para mim são algo realmente colateral). Falo português dentro de casa, traduzo livros em outros idiomas para o português. Hoje em dia essa é uma relação muito tranquila para mim, algo que acho que fui, também, conquistando com a idade. Sinto-me bastante próxima do Brasil, mas distante o suficiente para ter uma visão mais panorâmica das coisas.
7. Ganhar o Prêmio Saramago com Sinfonia em branco, ainda no começo da carreira, é algo marcante. O que mudou para você depois dessa conquista — em termos de reconhecimento, de escrita ou mesmo de expectativa?
O reconhecimento da minha carreira fora do Brasil começou a acontecer com o prêmio, e ele me abriu muitas portas – abre até hoje. Mas não tenho muitas ilusões com relação a prêmios literários, em geral. Eles são bastante subjetivos e respondem a um “espírito” local e do momento. Tenho uma relação com a minha carreira, hoje em dia, que é muito simples: quero escrever o que é importante para mim, e se puder publicar e chegar aos leitores, maravilha. Essa é a minha expectativa. Acho que o reconhecimento que porventura eu possa ter, no Brasil, tem menos a ver com premiações do que com a sequência das minhas publicações e a amizade que foi se desenvolvendo ao longo dos anos entre meus livros e seus leitores.
8. Você celebrou recentemente 25 anos de carreira literária. O que mais te emociona ao olhar para trás e o que ainda te move a continuar contando histórias?
O fato de ser possível fazer isso num mundo que tende ao caos. Esses dias eu revisitava a reflexão de Camus sobre o mito de Sísifo. O suposto absurdo da vida humana diante de uma, digamos, indiferença do universo. E a tarefa aparentemente sem sentido de rolar uma pedra pesadíssima morro acima só para vê-la rolando de novo morro abaixo. Bem, em muitas instâncias da nossa vida, das mais íntimas às que se relacionam ao modo como nos inserimos na sociedade e no mundo, a sensação pode ser a de uma enorme falta de sentido. Mas o pulo do gato está em abraçar essa tarefa (rolar a pedra – lavar a louça – escrever um livro ou um poema – ir à rua participar de um protesto – recusar-se a compactuar com a roda-viva do consumo histérico – o que seja) com empenho, dignidade e até mesmo alegria.



