18 de agosto de 2023

Trecho exclusivo do conto “Adentro”, de Maurício de Almeida

Escritor premiado retorna aos contos em seu novo livro, “Equatoriais” que acaba de ser lançado pela editora Maralto.

“Não só os amores perturbam rotas e frustram paisagens, talvez as viagens também não sejam tudo o que prometem os peregrinos. O corpo da amada e o corpo da estrada excitam e exaurem (…)”, anota Andréa Del Fuego no texto de orelha de “Equatoriais”, novo livro de Maurício de Almeida que acaba de sair pela Maralto.

Vencedor do Prêmio Sesc de Literatura com  “Beijando dentes” (Record) e do Prêmio São Paulo de Literatura de 2017 com o romance “A instrução da noite” (Rocco), “Equatoriais” marca o retorno do autor às narrativas breves em 13 histórias que percorrem os muitos caminhos que cortam o Brasil.

Na obra, o escritor conduz os leitores por uma viagem por diversas paisagens do país, suas rodovias, tipos humanos, afetos e desalentos. “Minha intenção foi criar histórias e situações que mostrassem como essas experiências impactam não apenas a rotina dos personagens, como suas próprias certezas e como enxergam o mundo.”, aponta Maurício.  

Confira abaixo o trecho do conto “Adentro”, que se passa na inóspita Transamazônica, um delírio que não leva a lugar nenhum.

1.

Desço a escada do avião e ao meu redor há pouca coisa além do sentimento de desterro e agonia por me encontrar em terra estranha, a solidão muito própria deste primeiro momento em um território que é pátrio e tão estrangeiro. Percebo também árvores tentando evitar um horizonte infinito e quente até o momento em que meus olhos encontram a estrutura de concreto e vidro e letras prateadas muito geométricas que identificam PORTO VELHO sem maiores anúncios ou avisos. Mapas nunca prenunciam concretos ou vidros, mapas não sonham nada.

Alguém teria de conferir a venda de madeira em Santo Antônio do Matupi, e, muito embora não tenha me oferecido, tampouco vacilei quando fui convocado à viagem. Viajar é desconhecer-se a si mesmo ao descobrir o outro, ponderei ao assumir o trabalho, e é descobrindo o outro que descobrimos a nós mesmos – viajar é um processo permeado por ilusões. Assim sendo, nesse início reparo tudo que se me apresenta, uma aflição compreender esse lugar inédito, mas apenas o calor forte me abraça sem rodeios e ao meu redor nada ainda me significa (e fatalmente nunca significará?).

A esteira rolante começa a se movimentar com a preguiça intrínseca a certas mecânicas para fazer desfilar à minha frente malas, caixas e embrulhos, malas, caixas e embrulhos: pego a mochila que suspendo nas costas e observo as pessoas cruzarem o limite da porta sem receio. Tentando premeditar surpresas, abro um mapa e o analiso como quem examinasse a anatomia de um corpo (nem que fosse meu corpo!): deduzo que até o Matupi teremos de alcançar Humaitá e depois seguir, mas não tenho certeza, pois os músculos e os ossos desses lugares estão ainda envoltos pela grossa pele do desconhecido.

Apanho o celular no bolso – nenhuma ligação. De que me adianta pensar em Isabela agora tão distante? se tudo que posso fazer é ir.

2.

A BR-319 é um traço infinito que se estende moroso e alheio ao tempo a lugar algum em meio ao nada – nada. A BR-319 é um igarapé de asfalto no qual florescem à margem postes alinhavados, impossíveis quilowatts viajando por fios suspensos sob um céu bruto e indiferente a qualquer luz. Nesse marasmo (um rebanho de novilhos atarantados abre e fecha caminho, um trator movimenta o pasto), as árvores monumentais ao fundo da paisagem são indiferentes a tudo: aos postes e aos quilowatts,

ao nosso carro moroso e ao tempo.

A continuidade quase hipnotiza e me flagro remoendo transtornos sem o susto de curvas ou o perigo de ultrapassagens. O balanço monótono e o ronco constante do motor não me derrubam em sono, mas confundem pensamentos, longilíneo absurdo fazendo florescer sentimentos brutos e descontínuos: tudo em mim é contundente e cheio de curvas e percalços. Ao meu colo, o mapa como se o ninasse enquanto aos poucos confundo sonos antigos, o sorriso ainda quente de minha mãe avisando chegadas, Isabela sorrindo despedidas pouco antes de o avião partir com pressa, o céu bruto de outras tardes e tantas coisas que perderam o nome – a BR-319 é um voo reto e firme no qual nada pode acontecer.

3.

No entanto, acontece: sem avisos ou anúncio, a BR-319 se desnuda finita e morre aos pés da Transamazônica, rodovia aberta com tanta violência que ainda causa dor. Enredado ao motor do carro, é possível ouvir máquinas de outros tempos em potência de óleo diesel colocando abaixo qualquer coisa sob o olhar atento e matemático de topógrafos, essa transversal falhando na tentativa de cruzar o país e existindo como se não existisse.

Desperto e lógico, desdobro o mapa no qual procuro qualquer indício desse acontecimento que adentro, mas não encontro nada além de um traço tímido escalando incerto o Amazonas e o Pará e o Maranhão e o Piauí. Todavia, a Transamazônica estende-se à esquerda e à direita em um corte transversal imenso que não coloca muitas questões ao imperativo de seguir – e o carro continua impassível rumo ao vazio de repente suspenso pelo balé circular de urubus que ascende e desce no céu quente e úmido de Humaitá.

É possível um vazio maior que este?

[…]


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