18 de maio de 2021

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Texto a partir de Pequena coreografia do adeus, de Aline Bei (Companhia das Letras)

Por João Schlaepfer

quem conhece
nos próprios
Pais
o Inferno
jamais se reconcilia
com Deus.

mas abrir mão d’Ele é tão duro
quanto abrir mão
da própria
Mãe
e do próprio
Pai.
seria por isso, Aline,
que Júlia conta:
“comecei a ser agressiva
com Deus, lançar pedras
no céu que eu almejava alcançar”?

sei que nada diz “Pequena coreografia do adeus” (Companhia das Letras)
sobre a Religiosidade de sua protagonista,
mas, Eu, como Descrente inveterado e
depois de uma década de Colégio Católico,
passei por todas as fases do luto para aceitar
que meu Deus morreu.

Há algo de semelhante
entre o Fundamentalismo
e a Simbiose:
em ambos
pedimos desculpa
por Existir.

e também em ambos somos proibidos de apontar com Lógica a falta da racionalidade.
“então a minha mãe coloca a culpa na sujeira
(o chão brilhando)
diz que a rua é perigosa
(os cães sem dentes)
não há ventilação no quarto
(a janela aberta)
depois diz que há
ventilação demais.”

Em ambos devemos nos culpar pela Felicidade.
“às vezes eu tento explicar pra ela que me sinto
feliz como nunca
e ela me responde: cuidado, Júlia. cuidado com a ilusão.

nesse caso, a Felicidade, como a Lógica, não é lida como uma mão
estendida.
é vista como o apontamento do que falta ao outro.
quando a mãe de Júlia via Felicidade na própria Filha
se lembrava de como a ela faltava a Felicidade –
e é muito mais fácil fazer do outro Infeliz
do que enfrentar os Fundamentalismos para ser
o próprio
Feliz.

a Felicidade alheia
nos mostra
escancara
a falta da Felicidade que há em nós.
daí,
a decisão:
enfrentar,
ou atacar.

numa dialética incoerente,
quando somos Nós os atacados
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“paro. Releio.
acrescento: Mas o fato é que Deus parecia surdo aos seus apelos.”
mas todo Apelo é a Deus uma reticência
e quem apela
como Júlia
por um Socorro
tem na sua ficção
a canalização perfeita para drenar as Angústias
da realidade,
pois é a ficção a própria realidade em um universo finito.
justamente por ela,
inclusive,
pela Finitude, o alívio,
a paz na garganta,
que é onde está o Coração
da narradora e de todos os leitores,
sobretudo os que se veem em Primeira Pessoa.
apazigua porque o verso tem Fim,
mas Continua.
porque acaba em um cheio de Vazio e em um
Vazio ecoado nas ruínas de um peito.
a demolição é cara.
onde se despeja o entulho
de Amor?
os cacos
da Mãe?
o pó
do Pai?
o Pilar carcomido.
“uma conversa em família nunca foi possível, não na minha casa
lá somos três solitários
irreversíveis
gravemente feridos
da guerra que travamos contra nós.”

“na janela de quem devemos fazer a Revolução?”
na de Deus sei que não.
nunca obtive resposta.
talvez seja melhor procurar por um estranho,
já que
“os estranhos não nos doem porque ainda não nos decepcionaram
e se mantivermos tudo a uma boa distância:
seguirão sendo
essa doce incógnita.”

mas achei melhor Não.
“fulano deve ser ótimo, pensamos
e as respostas ficam em suspenso
amamos a possibilidade
de a pessoa ser exatamente aqui que projetamos nela.”
é Verdade,
e é esse mesmo o Problema.
Tentando suprir o que eu acho que o Outro acha de mim
e tentado forjar o que eu Acho que o Outro deveria achar de mim,
sou eu outro
e
então
não há narrativa que segure
e amarre
os pedaços
de passado
memória
e futuro
dessa inconsistência ambulante.

talvez
para mim
para Júlia
para nossa proteção
só talvez
a melhor coisa
seja mesmo
o Esquecimento.


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