
“ Escrever literatura é lutar com palavras, fazer mil escolhas a cada linha, tatear no escuro e descobrir o que você quer dizer à medida que escreve.” – Sérgio Rodrigues
Por Felipe Maciel
Em entrevista exclusiva ao site da Agência Riff, o escritor e jornalista Sérgio Rodrigues revê momentos marcantes de sua trajetória literária. Autor de livros de contos, romances e de não ficção, o autor dá um panorama sobre assuntos diversos: da criação literária ao futuro da língua.
Sobre seu novo livro, Escrever é humano (Companhia das Letras), que será lançado amanhã (23 de agosto), às 16h, na Janela Livraria do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, ele comenta o impacto da inteligência artificial na literatura e no jornalismo, e os desafios para que escritores continuem relevantes.
Sérgio relembra o sucesso de O drible (Companhia das Letras), um de seus romances mais emblemáticos, reflete sobre a relação com o cânone literário brasileiro, que se reflete em seu romance mais recente, A vida futura (Companhia das Letras), o papel do humor e da ironia em sua obra e o debate sobre o português do Brasil como idioma autônomo.
A relação com o idioma e a linguagem é, a propósito, um dos temas mais relevantes de sua produção intelectual. Autor do divertidíssimo “Viva a língua brasileira” (Companhia das Letras), o autor assina no jornal Folha de S.Paulo uma coluna semanal em que se dedica a refletir sobre as articulações da língua falada e escrita com a vida contemporânea.
“O português brasileiro e o português lusitano estão se distanciando cada vez mais. Isso não é opinião, é linguística, é ciência. Na norma culta não se percebe isso com tanta clareza, mas por baixo dessa camada, na língua do povo, o abismo está se alargando.”, avalia o escritor.
Também relativiza o debate sobre o grau de dificuldade entre a escrita de contos e romances. “A condensação que um conto exige é um desafio, a sinfonia de efeitos encadeados de um romance também é.”, resume.
Na intrincada dança das palavras, Sérgio é craque quando entra em campo e se destaca em qualquer posição no jogo da sintaxe e da semântica. A IA vai ter que suar para chegar lá!
Confira a seguir a entrevista exclusiva do autor:
- Na apresentação de seu novo livro, Escrever é humano, você conta que há tempos planejava publicar uma obra sobre escrita literária, mas sempre adiou o projeto. O advento do ChatGPT foi o gatilho para levá-lo adiante, a partir do argumento de que a criação literária é algo fundamentalmente humano. A seu ver, quais são os principais desafios que os escritores enfrentarão para permanecer relevantes? Que conselhos daria a um(a) aspirante a escritor(a)?
Estamos no meio de uma revolução, e qualquer pessoa que diga saber com clareza o que será o mundo da escrita em cinco ou dez anos está mentindo. Neste momento, só podemos fazer apostas. Minha aposta é no que a escrita tem de intransferivelmente humano. Para quem está começando hoje nesse ofício, recomendo o básico: cultivar a leitura e a escrita à moda antiga, lenta, artesanal. Jamais perder essa dimensão de vista. Pode parecer óbvio, mas será cada vez menos, porque a maioria absoluta da humanidade está terceirizando e vai terceirizar ainda mais suas tarefas textuais à máquina.
Isso é inevitável, somos uma espécie acomodada, e afinal o robô imita nossa escrita com uma competência que cresce dia a dia. Quem vai se dar a esse trabalho, que é pesado, se puder evitar? Só quem quiser ser chamado de escritor, é claro. Vai ser difícil nadar contra a corrente, mas não vejo outra saída. Até para usar a IA como ferramenta auxiliar da escrita, uma ferramenta sem dúvida prodigiosa, é preciso em primeiro lugar garantir o controle do processo, ou seja, dominar os fundamentos da arte. Quem chegar achando que basta dar uns prompts para ser escritor será engolido. Escrever literatura é lutar com palavras, fazer mil escolhas a cada linha, tatear no escuro e descobrir o que você quer dizer à medida que escreve. Não tem como pular da ideia inicial para o texto final em meio minuto e achar que isso tem valor artístico. Pode até, se a pessoa for astuta e der sorte, vir a ter algum valor de mercado, porque o mercado é um monstro amoral que come de tudo. Mas o valor artístico é zero. Por definição. Zeríssimo. Não existe arte sem alma.
- Sua trajetória profissional é também atrelada à atividade jornalística. Acredita que a IA substituirá o repórter das redações de jornais e revistas? Ou o mesmo raciocínio se aplica ao jornalismo?
No jornalismo a história é um pouco diferente. A IA já se sai muito bem nos gêneros informativos em geral, como em todos aqueles em que a linguagem dispensa o mergulho em si mesma e é só um meio para se atingir um fim. O robô resume, traduz, disserta, parafraseia, organiza, correlaciona informações com competência cada dia maior, e tem uma memória e uma velocidade que deixam os seres humanos na poeira. Em todas essas tarefas textuais, digamos, duras, não temos a menor chance de competir. Acontece que o jornalismo não é só isso, sua parte que podemos chamar de mais nobre é outra coisa. Além de haver muito de autoral no texto das melhores reportagens, o olho do repórter, seu espírito crítico, sua curiosidade, sua intuição e sua coragem na coleta de informações são insubstituíveis. O que apresenta um risco imenso para a atividade. Reportagem custa caro, e que modelo de negócio vai permitir que se continue investindo nela num mundo em que informações superficiais em fluxo vertiginoso, uma das especialidades da IA, querem inundar tudo?
- O romance O drible é um dos livros mais marcantes de sua carreira. Vencedor do Portugal Telecom (atual Oceanos), finalista do Jabuti, publicado em diversos países, e presente em listas dos melhores romances da literatura brasileira contemporânea, ganhou em 2023 uma edição comemorativa de dez anos. A que credita o sucesso do livro? Como foi revisitar a obra para sua reedição?
O drible é um livro que ficou maior do que eu, e tudo indica que vai sobreviver a mim. O que é uma alegria enorme, claro, mas ao mesmo tempo é meio desconcertante, como acontece quando um filho cresce e vai embora de casa. O livro está na lista do vestibular da UFPR, e acabo de voltar de um encontro com sete ou oito centenas de estudantes do colégio Bom Jesus, em Curitiba. Naquele teatro lotado, vi muitos olhos brilhando, ouvi perguntas profundas sobre a formação da sociedade brasileira, um tipo de interesse que eu nem imaginava que os livros pudessem despertar mais nas novas gerações. A que isso pode ser atribuído? Espero que em primeiro lugar às qualidades do romance, mas com certeza contribui também o fato de que o livro foi abraçado pela crítica e pelo público como o tal “romance do futebol” que a literatura brasileira supostamente estaria devendo à nossa cultura esportiva. O futebol é uma coisa muito séria neste país, por mais que muitos intelectuais ainda torçam o nariz para ele.




1. Sérgio Rodrigues com amigos (e seu filho Daniel, 3 anos) no lançamento de “O homem que matou o escritor”, em abril de 2000; 2. Com Marçal Aquino no lançamento paulistano de “Sobrescritos” em 2010; 3. No Salão do Livro de Paris em 2015, falando de “Dribble” (Éditions du Seuil), entre Cristovão Tezza e Carola Saavedra, em 21/03/2015; 4. Apresentando “O drible” ao cara que deu o drible, em 01/05/2014.
- O cânone literário brasileiro é uma forte referência em sua obra. Machado de Assis, por exemplo, virou personagem de seu romance mais recente, “A vida futura”. No ano passado você também coordenou a edição especial de “Incidente em Antares”, de Erico Verissimo, e assinou o posfácio. Qual a sua relação com a tradição literária do país? Quais escritores foram mais marcantes em sua formação? Por quê?
Vou ficar com os dois citados. Machado de Assis por ser o maior escritor brasileiro, muitos furos acima dos outros. Um gênio espantoso, mas ao mesmo tempo uma figura meio enigmática que eu demorei um pouco a entender e curtir, depois de ter sido apresentado a ele pela escola cedo demais e de forma atabalhoada. E Erico Verissimo porque era o escritor que ocupava mais espaço na estante dos meus pais quando, no início da adolescência, me tornei um leitor voraz. Meu pai era gerente do Banco do Brasil, e toda vez que ele era transferido de cidade eu perdia contato com os amigos e precisava recomeçar a vida social do zero. Erico foi minha melhor companhia naqueles momentos mais solitários. Decidi virar escritor por causa dele.
- O humor e a ironia aparecem com frequência em sua obra, seja em livros de contos, romances ou não-ficção. Em entrevista, você disse que o humor é uma parte visceral do seu modo de narrar. Como vê a função desses recursos na sua escrita?
Não saberia escrever sem humor. Não é algo planejado, acredito muito na definição de Mário Quintana sobre estilo, que aliás cito no Escrever é humano: “Deficiência que faz com que um autor só consiga escrever como pode”. Também adoro ler escritores que têm humor, aliás acabamos de falar de Machado, que é um dos maiores humoristas da literatura universal. Para mim, humor é quase sinônimo de inteligência. Me espanta perceber que uma parte da crítica tem preconceito contra o cômico na literatura, como se ele fosse um recurso menor, de livros e autores menores, exclusivamente comerciais. Shakespeare e Cervantes discordariam.
- Você assina uma coluna na Folha de S.Paulo em que aborda temas relacionados à língua portuguesa e a linguagem em diálogo com questões sociais e políticas contemporâneas. Publicou também o livro Viva a língua brasileira, sobre a vertente do português no nosso país. Como vê o debate de que o português brasileiro caminha para se firmar como outro idioma?
O português brasileiro e o português lusitano estão se distanciando cada vez mais. Isso não é opinião, é linguística, é ciência. Na norma culta não se percebe isso com tanta clareza, mas por baixo dessa camada, na língua do povo, o abismo está se alargando. O que não significa que nossa língua vá se tornar oficialmente independente um dia. Esse é um desfecho possível, mas parece improvável, por não haver interesse político de nenhuma das partes numa cisão. De todo modo, me alinho com os linguistas que defendem uma atualização da norma culta brasileira, um conjunto de medidas de puro bom senso que nos livrem de regrinhas lusófilas que são arbitrárias ou servis, distanciando mais do que seria necessário a escrita da fala, estimulando a decoreba e atravancando o ensino. Essa é uma tarefa cívica que a cultura brasileira tem pela frente. E já está atrasada.
- Em 2015, você publicou em seu blog Todo Prosa o texto intitulado “Dizer que escrever contos é mais ‘difícil’ é paternalismo”. Como autor de livros de contos e de romances, você tem preferência? O que é mais difícil de escrever: um romance ou um livro de contos? Por quê?
Gosto igualmente dos dois gêneros. Não vejo sentido nessa distinção entre graus de dificuldade. A condensação que um conto exige é um desafio, a sinfonia de efeitos encadeados de um romance também é. Tudo vai depender da inclinação natural de cada pessoa para um fôlego narrativo maior ou menor. E também da história que se deseja contar, claro, pois cada história, se for bem trabalhada, vai decidir sozinha sua própria extensão, e a nós só resta obedecer. Agora, com cinco páginas ou com quinhentas, vamos combinar que difícil mesmo é escrever algo que preste. Escrever é humano, e errar também. Tudo indica que uma coisa não existe sem a outra.



1. Com os filhos Clarissa e Daniel na cerimônia do Prêmio Portugal Telecom (atual Oceanos), no Rio de Janeiro, em 08/12/2014; 2. Com acadêmicos da ABL após apresentar a conferência “Em busca da língua brasileira”, em 19/05/2022; 3. Comemorando a edição de 10 anos de “O drible” na Travessa do Leblon com grande elenco: Fernanda Montenegro, Fernanda Torres, Mariana Verissimo e Lúcia Verissimo, em 11/10/2023