14 de julho de 2025

Exclusivo: leia “Para sempre na memória”, conto inédito de Fernando Scheller sobre o icônico Verão da Lata

Autor do romance “Gostaria que você estivesse aqui” (HarperCollins Brasil), Fernando Scheller retrata no livro a vida no Rio de Janeiro dos anos 1980, um período marcado igualmente pela alegria efervescente do retorno à democracia e o medo da aids. Na obra, cinco personagens de mundos distintos veem suas vidas se entrelaçarem em meio ao amor, à dor e à busca por pertencimento.

Foi também durante os anos 1980 que ocorreu um dos episódios mais surpreendentes da década. De repente, em setembro de 1987, 15 mil latas com 22 toneladas de maconha prensada com mel, perfeitamente embaladas a vácuo, surgiram flutuando no litoral brasileiro. Daí surgiu o Verão da Lata, uma versão brasileira do Summer of Love. No conto inédito “Para sempre na memória”, cedido com exclusividade pelo autor, Scheller evoca o clima da época 

“‘Para sempre na memória’ surgiu a partir de uma ideia que acabei não desenvolvendo em meu livro “Gostaria que você estivesse aqui”: uma história baseada no famoso Verão da Lata, um dos mais icônicos do Rio de Janeiro. A ideia, aqui, é tentar entender como foi viver esse momento marcante dos anos 1980 no Rio, mostrando como diferentes pessoas experimentaram de diferentes formas este mesmo evento. Quem sabe esse pequeno conto não possa, em breve, ser mais desenvolvido em um texto mais longo ou até um projeto audiovisual? Pensem neste texto como uma provocação à sua imaginação!”, , explica o autor.


Confira na íntegra o conto inédito “Para sempre na memória”, de Fernando Scheller:



Para sempre na memória

Duda soube, ao ver aquelas latas baterem contra as pedras do Arpoador, que seu destino estava para mudar


           
Certos momentos são icônicos e ficam na memória para sempre. Na maioria das vezes, só descobrimos que testemunhamos um momento histórico anos ou até décadas mais tarde. No entanto, quando aquelas latas de tinta bateram na pedra do Arpoador naquele fim de tarde de 1988, Duda soube, de certa forma, que sua vida ali mudaria. As latas tinham um cheiro doce, mesmo em meio à maresia – um perfume que ele reconheceu na hora.


            O brilho prateado da embalagem era atraente demais para ser ignorado. Duda desistiu de pegar a próxima onda e remou com os braços até as latas de tinta. Ele já imaginava o conteúdo – já ouvira falar da lenda, mas acreditava que tudo não passava de um sonho. Agora, a história chegava até sua prancha de surfe.


            Duda apressou-se em empilhar a mercadoria na prancha e deu um jeito de chegar à areia. Nada como morar de frente para o Arpoador. Aquele verão seria icônico para seus amigos – ele só precisava esconder as latas do pai. O coronel, que parecia não ter entendido que a ditadura brasileira terminara anos antes, jamais entenderia a liberdade que as latas representavam.


            Duda era uma lenda em sua escola, mas não se sentia especial. Era um ícone por ser lindo, loiro e um ás do surfe – na verdade, sabia que seu nível não chegaria sequer ao de um atleta de nível estadual, talvez até municipal. Fingia não se importar em ser um homem de 20 anos perdido entre aqueles adolescentes. O que não tinha em inteligência ou capacidade de concentração, compensava na beleza e nas histórias de aventuras que jamais aconteceram. Era uma figura inspiradora para um público que não lhe interessava.


            Um caso perdido em casa. Derrubou as latas que carregava no chão da cozinha, lascando um azulejo, em uma tentativa inconsciente e desesperada de chamar atenção. A mãe apenas revirou os olhos e nada disse: Duda estava sempre derrubando objetos, arranhando carros e repetindo de ano. Nada de novo no front. Seu quarto era uma galeria de pôsteres envelhecidos: a beleza de Farah Fawcett, o cartaz de “Menino do Rio”, uma foto antiga de Ozzy Osbourne. O cenário combinava com o estado de espírito de Duda e deixava sua situação ainda mais triste.


            Com as latas, tudo estava para mudar. Escondeu (mal) a mercadoria em um guarda-roupa – a empregada já havia sido liberada da tarefa de limpar sua sujeira – e pensou imediatamente em ir à Cidade de Deus. Duda sabia, mais do que ninguém, que não poderia ser o cérebro da operação: para isso, recrutaria Roberley, um amigo que havia conhecido comprando maconha. Rob evitou que ele fosse assaltado – ou coisa pior – e os dois se aproximaram. Embora Rob tivesse parado os estudos na sétima série, Duda sabia que ele era muito mais inteligente e saberia como capitalizar o tesouro encontrado.


            Enfim, o charme magnético que Duda emanava, apesar de se sentir parado no tempo e no espaço, serviria para algum fim. Rob seria o cérebro da operação, enquanto o garoto da zona sul faria o papel de relações públicas. As latas seriam o passaporte para livrar-se da influência do pai, do quarto minúsculo e abarrotado de porcarias, da humilhação de ser um estudante três vezes repetente. Foi com essa esperança que Duda guardou uma das latas em sua mochila. Rob saberia o que fazer. Uma nova era, que ficaria para sempre na memória, estava prestes a começar.


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