24 de agosto de 2020

Da angústia à arte. Saltos e voos da Fernanda Young.

Fernanda Young com Euge?nia Ribas-Vieira e Eduardo Spohr; A ma?o esquerda de Ve?nus autografado para Euge?nia-Ribas Vieira


Por Eugênia Ribas-Vieira

Eu gostava muito da Fernanda e sempre fui uma grande admiradora de seu trabalho e de sua personalidade, mesmo antes de conhecê-la pessoalmente. Quando li o Vergonha dos pés, devia ter uns 18 anos, e fui saber mais sobre ela em entrevistas no jornal, fiquei muito curiosa por aquela pessoa tão diferente. Sempre fui muito tímida e Fernanda aparecia ali, nesse lugar ideal para mim. Tinha uma voz autorreferencial muito segura, além de potente, e não aceitava as coisas como eram. Após, de alguma maneira, fazer parte de sua vida literária (e artística, assim posso dizer), pude absorver um pouco do que antes era uma imagem idealizada. Pude, de alguma maneira, viver parte dessa liberdade que ela ensinava. Depois de sua morte, um vazio imenso se fez em uma parte da minha vida que não era rotina, ou sequer amizade, ou família, ou trabalho. Algo se fez vazio nessa parte que pertencia ao inesperado: Fernanda era esse canto dobrado da página de um livro, a página que irá nos revelar algo de sublime e, muitas vezes, de extraordinário. Fernanda sempre foi originalidade em estado puro e não nos permitia sermos diferente – nos ajudava a procurar em nós mesmos a nossa originalidade.

Acredito que aquilo que tentou com seus livros, com sua literatura, foi – por meio de sua própria subjetividade e desta afirmação pessoal e inesgotável de seu “eu”, que permeava todos seus personagens e estava também muito presente em sua poesia –, gerar uma ruptura no leitor, sugerir-lhe, por repetição, uma imersão que fosse também autorreferencial. Fortalecer-se, por fim. Talvez, eu assim possa descrever o efeito de sua obra no outro. Seus livros despertam para essa forte aproximação com um outro (representado pelos seus personagens e eu-poético) assoberbado e exagerado, que não se contém em dizer de si. E que sua maior aventura é a liberdade que encontra em si mesmo. E Fernanda Young fez isso de maneira leve, com muita ironia, muitas vezes, como se o mergulho subjetivo não passasse de uma grande diversão. Seus livros nos levam a crer que, no final, todos os nossos dramas, entregas e paixões não devem ser levados a sério – fica um grande riso, estridente, que nos serve de resposta: estou aqui para o meu próprio divertimento, para a minha própria descoberta, não me atrapalhe.

Temos livros como A mão esquerda de Vênus, no qual o eu-poético se designa a marcar em versos livres um próprio caos emotivo em que está imerso. Onde o amor parece se sobrepor a toda escolha de imagem, tanto as poéticas, quanto a linguagem visual que o livro apresenta, que são imagens da própria autora nessa aventura de descoberta do amor – e daquilo que causa sofrimento no amor. A mim, a experiência com este livro me fez entender que podemos nos expor naquilo que somos mais vulneráveis. E podemos nos desnudar em nosso sofrimento também e, assim, transparecer, deixar vir à tona, numa estética muito autoral e punk, talvez seja o conceito, livre, por fim.

Encontro de Fernanda Young com Maria Vale?ria Rezende e Stella Maris Rezende no Sala?o Carioca do Livro; Fernanda Young com Santiago Nazarian.


Havia qualquer coisa de inacreditável na minha relação com Fernanda Young que sempre me fez questionar a razão de sermos tão ligadas. Ou me perguntar por que ela seria tão ligada a mim? Acho, simplesmente, que eu lhe servia de apoio, de chão, que a impulsionava, de alguma maneira, a saltar. E algumas vezes pude acolhê-la, quando na queda. Em troca, Fernanda sempre me deu a liberdade: como ser livre? Este era o primeiro mandamento da Fernanda Young e desde o primeiro momento em que a conheci, ela mudou minha maneira de ver o mundo. Por onde passava, Fernanda deixava seu riso alto, suas garrafinhas de Heineken, suas gafes, erros, acertos e beleza. Subjetivamente, percebo, hoje, um ano depois de sua morte, que suas ideias me serviram de sonhos. Ela era uma camada onírica que emoldurava os dias. Neste último ano de luto, com alguma clareza, entendo que Fernanda ocupava um lugar inexistente. Um lugar que sobrava, que transbordava dessas horas diárias, dessas horas que faziam sentido. Ela habitava um não-lugar, este da magia, este lugar da criação. Ao mesmo tempo, para ela este lugar, muitas vezes, significava angústia e solidão. Sempre foi nesse espaço nebuloso que me encontrei com Fernanda, quando eu precisava ser só ouvidos. Tentávamos, frente àquela força inesgotável que ela tinha, criar algo material, sólido. Meu papel sempre foi o de ouvir, reunir e organizar (cortar, quando ela permitia).

E, diferente dessa Fernanda tão bonita, tão segura que muitos conheceram, tive o enorme privilégio de entrar em contato com este “algo” dela que ela mesma não dava conta. Era uma angústia grande, uma energia que sobrava, uma vontade de se descobrir subjetivamente e de se colocar no mundo, que parecia nunca se esgotar. E não se esgotaria nem se esgotou – para o bem da humanidade… Ela sempre conseguiu transformar essa angústia em arte e não desistia enquanto tal projeto não se realizasse. Nos últimos meses de convívio (mesmo pelo Whatsapp), eu ficava surpresa que, embora ela estivesse em uma rotina assoberbada de funções, ainda se exigia escrever todos os dias, como se não houvesse cansaço. Em um de seus últimos áudios, dizia estar dormindo apenas cinco ou seis horas diárias. E eu lhe respondi, em tom irônico, que estava como eu – que tinha acabado de ter bebê e acordava de três a quatro vezes por noite. Foi nesse ritmo que pensamos a publicação de Posso pedir perdão, só não posso deixar de pecar e que ela escrevia um novo romance, que se chamaria O livro – O mistério do sofrimento, no qual mergulhava na descoberta de um dos períodos mais difíceis de sua vida. E mesmo nele, nunca perdeu o humor.

Fernanda Young escrevia em paredes, em cartas, em cadernos, no próprio corpo. Esse seu “Eu” parecia ilimitado, parecia lhe sobrar indefinidamente. Não podia sobrar espaço em branco. Eu, pelo contrário, sempre fui a pessoa dos silêncios, da pele sem qualquer marca, das paredes vazias. Lembro que, para o livro A mão esquerda de Vênus, eu estava em Portugal, de férias, sem internet – em Vila Verde, cidade da madrinha de meu marido, e corria para o único café da cidade com Wi-Fi, uma vez por dia, porque Fernanda me enviava fotos de suas paredes do apartamento de Miami, todas escritas e desenhadas. Tudo aquilo era pura poesia, e, na mesma viagem, eu transcrevi para Word – e quando voltei, tínhamos cerca de dez poemas. Fernanda sempre foi intensidade. E, devo confessar, que eu adorava. Enviava-me áudios do supermercado, se dizia exausta, mas sempre trazia uma ideia nova, um novo poema. Eu, simplesmente dizia que descansasse. Aliás, nos últimos meses de sua vida, era o que mais lhe pedia, que descansasse. Mas Fernanda brigava com o cansaço e, sua última frase no Instagram foi parte dessa briga: “Onde queres descanso sou desejo”.

Sempre tentei, junto a ela, descobrir o que era esse ímpeto criativo, qual era o material dessa “força que lhe sobrava”. Estava ali, nesse espaço nebuloso, como eu disse anteriormente, seu poder de criação e o nosso encontro, autora e editora. De repente, com a falta de Fernanda, sim, a vida está mais calma. Mas pareço não desejar a calma, sinto muito sua falta. E hoje me lembro, principalmente, dos momentos mais turbulentos. Lembro-me das mensagens por algumas madrugadas. Nas ligações de mais de uma hora, em que não parava de falar um minuto. Nos dias em que me prendia com mensagens ininterruptas pelo Whatsapp. Nunca soube explicar bem o que era. Nem ela sabia. Era angústia, simplesmente. Grande parte dela habitava esse lugar angustiado que, de maneira singular, a impelia a criar para sair dele e a se colocar subjetivamente no mundo.

Gravura ine?dita de Fernanda Young; Exposic?a?o Frida, Bob Wolfenson


Tenho ainda alguns de seus projetos em mãos. Anotei alguns de seus sonhos. Alguns de seus versos. Eles apontam para as páginas brancas de meus novos cadernos. Para essas paredes sóbrias de minha casa. Para minha própria pele, que nunca teve coragem de fazer uma tatuagem. A morte de Fernanda foi cortante. Não sangra, nunca sangrou. Apenas emudece. Transparece. Tudo fica liso e branco, em uma paz que ainda me é estranha. Talvez um dia ainda faça uma tatuagem em sua homenagem, Fernanda. Para sempre lembrar-me de seu ímpeto criativo e para me lembrar do meu próprio “Eu”.


Fotos de Fernanda Young caracterizada de Frida Kahlo: Bob Wolfenson Outras fotos: Arquivo pessoal de Eugênia Ribas-Vieira


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