19 de abril de 2022

O adeus à Lygia Fagundes Telles

Lúcia Telles, neta de Lygia Fagundes Telles, assina carta-homenagem de despedida para cerimônia de homenagem à imortal na Academia Brasileira de Letras.

Uma das grandes alegrias de minha avó Lygia era viajar. Viajamos muito, ela e eu, e as lembranças são intensas: um pôr do sol em Salvador, o polvo no azeite de Lisboa, a calçada desenhada do Rio de Janeiro. Na minha infância, recebia cartões-postais de todas as suas viagens, lindos, engraçados e carinhosos. Ela escrevia, desenhava, colava recortes, vinham do mundo todo. Mas, sempre, a viagem mais feliz, esperada, familiar era para o Rio de Janeiro: “minha segunda cidade tem mar!”, me disse muitas vezes. E o mar era a paixão no Rio, sem dúvida. Mas também a Academia Brasileira de Letras, poder estar nesta Casa, com os amigos queridos. Mais velha, entendi o que isso queria dizer, a origem da felicidade que transbordava nela e que na infância eu captava, mas não entendia a dimensão: viajar para chegar na outra morada, encontrar os amigos, interlocutores, dividir a vida com parceiros do ofício, amado ofício. Tínhamos combinado que, “quando tudo melhorasse!”, iríamos ao Rio de Janeiro, nem que fosse pela última vez, iríamos à sessão na amada Academia.


            Acordar na suíte do Glória, ver o mar no Forte de Copacabana, abraçar os amigos, visitar a biblioteca Lúcio de Mendonça, conversar e dar risada. Ela me dizia sempre como eram importantes esses gestos do cotidiano, esses encontros, os passeios pelas cidades do coração, “Lúcia, as coisas simples, as coisas simples”. Não deu tempo!

Apesar de todo o seu tamanho, sua importância – hoje, sei bem, foram anos e anos trabalhando com ela –, minha saudade enorme é da avó carinhosa, engraçada e companheira. Da avó que me formou, me orientou, abriu sua casa, me trouxe para perto de sua vocação, me mostrou caminhos e me levou a percorrê-los ao seu lado, até o final, numa cumplicidade enorme. Uma vocação também para as coisas das relações, do coração, quem está à volta, quem a conheceu, ama, sente falta, sabe bem disso.

Em sua posse nesta Casa, ela falou sobre a loucura, o acaso e o imprevisto. De como a literatura surge dessas combinações e, ao mesmo tempo, salva a humanidade de suas amarras. Falou também sobre a paixão pela palavra, a luta do escritor com a palavra, a luta de “Suor e sangue. A palavra verte sangue”. E os poetas românticos, falou sobre Gregório de Mattos, Álvares de Azevedo e chegou a Drummond, o grande amigo Drummond. Na Casa da Palavra, o discurso de posse já apontava para suas intenções, para seus caminhos, para aquilo que realmente a interessava: a literatura, a criação e os amigos, companheiros de percurso de antes, muito antes, e os contemporâneos. Ela acreditava na esperança, na aposta e no amor: “sei que é preciso apostar, e, de aposta em aposta, cheguei a esta Casa para a harmoniosa convivência com aqueles que apostam na palavra.” A esperança, o amor e o humor.

É disso que quero dividir sempre que falar sobre ela. É assim que viveu, é assim que construiu a ponte com seus leitores, ponte aberta, contínua, sólida. A avó também assim. Mão estendida, colo aberto, cabeça atenta.

E num mimetismo de amor, para lembrar outro querido poeta, Vinícius de Moraes, eu termino copiando o jeito dela falar: “Meus amigos, minhas amigas, olho aqui e vejo todos vocês, amigos que me acompanham e me iluminam”.

Lúcia Telles

SP 07/04/2022


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